Data: 14/12/24
Com os artistas: Carla Santana | Mariana Rocha | Leo Batistel
Mediação: Luiz Guilherme Vergara
(Professor Artes UFF / PPGCA UFF)
Arqueologia da criação
Chamo de arqueologia da criação o diálogo que escava as camadas conscientes e não ainda conscientes de uma criação-trajeto e processo artístico, poético, ou mesmo científico indissociável da vida-obra. Três encontros foram realizados com cada um destes artistas: Carla Santana, Leo Battistelli e Mariana Rocha. As conversas e con-fabulacões foram triangulares, em que as obras também participavam como pensamentos e formas falantes incorporando intuições palpáveis, muitas delas não ainda conscientes.
Carla Santana | Tecnologia e ressonância da terra
Carla Santana chama de tecnologia da terra suas ações e observações realizadas em coletas de barro e argila nas viagens de residência que se tornam matéria e material de suas pinturas e esculturas. Ao mesmo tempo, sugerem confabulações geopoéticas moleculares da consciência da Terra presentes em suas pinturas como enunciações de memórias dos grãos de argila, do chão, dos elétrons da terra dos quilombos do Sertão Negro de Goiás.
As visões e vivências de Carla reaparecem como incorporações do bem-viver das comunidades quilombolas que visitou, como simbioses entre seres-terra-barro. Essa residência artística na Ilha da Conceição, no entanto, propiciou o tempo necessário de maturação e desaceleração de processos e processualidades. É a consciência do barro-Terra que age sobre a artista na transformação geopoética e cosmopoética da matéria em seu devir e destino natural de ser. A artista agora é aprendiz da sabedoria da Terra, dos formigueiros, dos cupinzeiros e colmeias. As residências, ateliê-escola Sertão Negro de Goiás, os territórios Calunga e Quilombos são incorporados como odisseia ancestral de futuros possíveis.
A noção de tecnologia da terra como Carla apresenta é extremamente instigante para se pensar sobre os elétrons da terra, sobre a consciência ecossistêmica da inseparabilidade de cada átomo – grão – do barro e suas memórias ancestrais. A artista age como condutora e conduzida por uma intuição palpável a ser agente de uma exteriorização de famílias de formas que passam a ser regidas pela lei vital de nascimento, multiplicação, metamorfose e migrações. É possível assumir que em cada pintura da Carla se territorializa um corpo complexo de infinitos corpos. (LGV)
Leo Battistelli | Capela do Amor Infinito
Prezades visitantes,
Lembrem-se antes de entrar nesta capela – aqui se invoca o amor infinito.
Em todos os registros da odisseia humana, das grutas com pinturas rupestres, templos, danças e rituais, muito antes da separação de cultura e natureza e das cruzadas entre templos e catedrais, as comunidades humanas celebravam, criavam oferendas por seu pertencimento mútuo – terra e cosmo –, pela imanência e transcendência que atravessa transtemporalmente o fenômeno humano.
Aqui o artista Leo Battistelli cria sua oferenda trans-portadora ecológica em colaboração com os líquens. A exigência de condições ambientais de completa pureza de ar e água para o nascimento desses seres de natureza “trans” fez com que os líquens fossem reconhecidos com indicadores de saúde ecológica; em contraponto, sua ausência sinaliza alerta de poluição. É exatamente esse amor e pertencimento mútuo interespecífico entre seres de águas puras e os de ar-terra pura que vêm inspirando Leo Battistelli a produzir suas co-labor-ações com os líquens e a dedicar esta capela a louvar a beleza e consciência na diversidade da natureza.
A mútua associação solidária interespécie invoca a metáfora da lucidez da natureza como uma forma de amor infinito. É com essa reverência à infinita natureza-amor que Leo concebe esta obra-capela propondo a presença de um manto-oferenda de líquens como trans-portadora da pureza regenerante da vida para todas as divindades femininas ressonantes vitais e espirituais do sentido da Mãe do Mundo (Mãe Terra – Gaia), em especial aqui, nesta Ilha da Nossa Senhora da Conceição, à Concepção, como unidade planetária de todas as formas e modos de existência – visíveis e invisíveis. (LGV)
Mariana Rocha | Pinturas como seres bioluminescentes
“O mar não tem cabelos”.
Luz e água são os agentes da síntese da matéria lúcida presente nos seres simbióticos bioluminescentes incorporados nos imaginários fabulantes ou flutuantes das pinturas de Mariana Rocha. Seu interesse primeiro eram as imagens de seus próprios órgãos, uma vez que teve quando criança a saúde muito frágil e a necessidade de guardar os exames, e ainda olhar para eles durante anos – o que aparentemente pode ser um fato biográfico sem mais significados. Quando, porém, sua atenção como artista ressignifica o olhar sobre a vida interna de seu corpo, cada órgão, suas formas e cores ganham novo sentido.
A residência MECA acrescentou a presença do mar, pelas travessias de barca na Baía de Guanabara. O olhar da artista pela janela foi o suficiente para disparar uma nova percepção ou epifania para sua pintura. Seu interesse se desloca para as criaturas do fundo do mar, especialmente os seres que não são vistos na superfície das águas, tal como seus órgãos internos. Essa conexão improvável ou ressonância vital abre a intuição geopoética para o sentido de reconfiguração ecológica de pertencimento mútuo, eu-mundo, eu-oceano, para a consciência da natureza oceânica que navega em nossos corpos, atravessados por pensamentos, sensações e afetos geradores de potência de agir.
Nesta arqueologia da criação, Mariana Rocha compartilha a dissolução de fronteiras migratórias entre imagens científicas e seres imaginários, criaturas que passam a habitar também seus sonhos noturnos e diurnos, como se tivessem vida própria. Suas telas são compostas por várias camadas de seres flutuantes que reflexivamente penetram como “fluxos de consciência”, como escrita automática, porosa e líquida, pedindo sua exteriorização bioluminescente como arte.